Em entrevistas recentes, os filósofos Slavoj Zizek e Vladimir Safatle especulam sobre os diversos cenários que possam emergir da pandemia do coronavírus, no Brasil e no mundo. São dois brilhantes pensadores, vale ler por inteiro as matérias, mas o que chamou minha atenção foi sobretudo a crença, por parte do esloveno, e a ponderação também do brasileiro de que a função social do Estado sairá da crise fortalecida e de que vai se acelerar o colapso do neoliberalismo.
Fico me perguntado como se encaixa nessa perspectiva um aspecto que me parece o mais cruel da pandemia: há uma seletividade evidente nas mortes que não se resume aos idosos, em relação aos quais já representa uma reforma previdenciária da maior eficácia, o sonho do Paulo Guedes. Mas além destes, o perfil predominante das vítimas é resultado exato e extremado das próprias antipolíticas sociais neoliberais: são os pobres e miseráveis, os periféricos dos grandes centros, os imigrantes ilegais, povos indígenas e outros extratos indefesos dos quais a nova economia pode prescindir sem problemas e até agradecida.
Parece mais com uma vitória arrasadora do que um colapso. Mas é claro que os filósofos avistam nesse genocídio o germe do seu contraponto, seja numa emanação de solidariedade ou de pragmatismo, levando a uma “reconstituição da noção de governo”, como diz o Safatle. Se isso vai cair à esquerda ou à extrema direita, em cada lugar e cada conjuntura, é a dúvida que permanece. O quanto de solidariedade se pode esperar que brote, aqui no Brasil, por conta dessa dramática experiência coletiva da Covid-19?
O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) trabalha desde o ano de 2000 pelo que já está explícito em seu redundante nome. E a insistência no termo ainda é pouca, em um país onde há mais de 300 mil presos sem qualquer condenação, segundo o monitoramento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para uma população carcerária de 800 mil pessoas – o dobro da capacidade prisional. Dados atuais do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) mostram também que em torno de 40% dos encarceramentos estão relacionados à lei das drogas, e quase 90% a crimes não violentos. Mais de 200 mil presos têm algum tipo de problema de saúde e a condição sanitária dentro dos presídios é sabidamente de abandono e degradação.
Partindo dessa grave realidade e no contexto da pandemia, o IDDD requereu ao STF por medidas de proteção a presos nos grupos de maior risco. Foi atendido por liminar do ministro Marco Aurélio, recomendando a adoção de regime domiciliar às gestantes e lactantes, HIV positivos, portadores de tuberculose, câncer, doenças respiratórias, cardíacas e imunodepressoras. Mas a liminar foi revogada em seguida pelo plenário do tribunal, por seis votos a dois, decisão amparada em tecnicidades e no pressuposto de que o executivo já está fazendo o necessário para o cuidado dessa população, sob os aplusos do ministro Sergio Moro.
Segundo Moro, a situação nos presídios se encontra “ainda absolutamente sob controle”. É expressão que costuma preceder um estado de coisas absolutamente fora de controle. O ministro também comenta um caso de contaminação no Distrito Federal em que “infelizmente, pela identificação tardia da doença, é possível que ele tenha infectado outros 20”, como se a presença assintomática do vírus não fosse o mais notório e central dos problemas. Veremos em poucas semanas o que mais se terá a lamentar. E lá adiante, saberemos se a pandemia pode afinal nos levar mais próximo de um socialismo ou de um recrudescimento neofascista. Mas a barbárie já está entre nós faz um bom tempo.
Link para a entrevista do Slavoj Zizek
Foto Observatório do Terceiro Setor
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